terça-feira, 31 de maio de 2011

Uma das ferramentas de trabalho, que se revelam de maior utilidade (e refiro, surpreendente, é a poesia. Digo surpreendente, porquanto numa comunidade sem hábitos de leitura e em particular de poesia, a constatação de tal facto é deveras curioso e interessante. Aquando da leitura e trabalho de dramaturgia de UMA GOTA DE MEL, a primeira impressão que lhes ficou, foi a esperada: um encolher de ombros e a ideia de que o texto era demasiado infantil, desprovido de interesse para eles. Depois trabalhou-se o texto com uma leitura mais «olhos nos olhos», mais intimista, mais para dentro de cada um. A partir de várias leituras e explicações, avivaram-se as pontes do texto para a realidade geral e a pessoal. Então, o resultado foi um manifesto entendimento e aceitação, de que: "as grandes tragédias pessoais ou colectivas podem começar pela mais ínfima das coisas, até mesmo uma gota de mel doce que as abelhas foram colher a umas flores belas e frescas".Eles começaram a entender e a aceitar que de facto, UMA GOTA DE MEL, trata, parte, ou em alguns casos, a vida de cada um no seu todo. De facto, eles sabem melhor que ninguém que foi um gesto ínfimo que determinou a sua tragédia. Recordo que a esmagadora maioria dos alunos/reclusos/actores, tem como base da sua pena, a relação com estupefacientes.
Portanto , o estabelecimento de pontes para a realidade de cada um, através de um texto poético, revelou-se um instrumento de trabalho fantástico, e refiro de novo, surpreendente.

segunda-feira, 23 de maio de 2011

"A ORDEM SEM ORDEM"

A reflexão que venho partilhando, totalmente impírica, e tal como qualquer processo de trabalho em que o ritmo "não é determinado", mas "vai sendo determinado", a ordem dos conceitos é como a sementeira à mão; umas sementes vão para aqui, outras para ali, outras saem até da terra preparada para a receber, outras o vento leva-as para outro lugar, mas no fim, e quando a força da terra o determina, tudo nasce e se ordena. Portanto, às vezes volto ao já dito, depois vou lá para a frente, regresso onde estava, etc.
De facto, o trabalho realizado neste contexto, não obedece - e porventura ainda bem que assim é, designadamente porque abranda o ritmo por vezes alucinante do dia a dia - às regras que determinam a produção de um projecto, artístico, no caso. O interessante, e acontece amiúde, é que, na ausência desse ritmo, acontecem as coisas mais frutuosos e extraordinárias, como que a dizer-nos que o mais importante, pode não ser o produto final, mas umas quantas pequeníssimas coisas que se nos apresentam com frequência. Quantas vezes por entre um cigarro que se enrola, surgem os filhos e até os netos, as memórias da guerra ou as viagens e aventuras mais espantosas. Nessa partilha acontecem as mais notáveis improvizações e aqueles momentos da inspiração mais sublimes. Só depois reparamos que o que aconteceu não foi "o ensaio", mas "um ensaio", e sempre que assim acontece o tempo passa bem mais depressa. Registe-se que estes ensaios são os que verdadeiramente preparam o trabalho final.
Volto à leitura de O REI IMAGINÁRIO do Raúl Brandão e depois a: UMA GOTA DE MEL, de Leon Chancerel. Se no primeiro a história anda em redor de um magistrado que, tal como o mais comum dos cidadãos, se viu envolvido nas teias da justiça, e vai pagar por isso, no segundo, eles são confrontados com a mais perturbadora prova que a mais dramática experiencia humana começa - pode começar - pelo gesto mais inocente. O encontro com este poema fascinante de Chancerel, dá-lhes a oportunidade de se confrontarem com a sua própria experiência. Eles sabem muito bem do que se trata. Esta como que autobiografia, leva alguns a partilharem até o motivo de estarem ali. Não existe acontecimento mais extraordunário que este do teatro: a catarse. Uma contrição. No final de um desses "ensaios" alguém dizia: "obrigado, a porta da cela começa a ficar de cada vez mais aberta apesar de rodada a chave da fechadura"
De novo lá para o princípio: "a diferença entre a prisão e a liberdade é o tamanho do pátio".
Finalmente, por hoje, a PEDRA FILOSOFAL, do Gedeão, aquela coisa do sonho, não é verdade? Foi pretexto não para um ensaio, mas para um "daqueles ensaios".

Projecto «segundo S. Mateus»

"Estava com fome e deram-me de comer. Estava com sede e deram-me de beber. Era estrangeiro e receberam-me. Estava sem roupa e vestiram-me e cuidaram de mim. Estava na cadeia e visitaram-me". (S. Mateus 25.35.6)

O objectivo do trabalho a fazer é produzir, na sua primeira fase, um espectáculo de teatro dentro da cadeia, para, com isso, acrescentar valor na confiança e auto-estima num conjunto de reclusos/alunos, e centra-se, para além de trabalhar a auto-estima pessoal e colectiva dos reclusos/alunos, no reforço de:
- A importância para a comunidade reclusa de exemplos de “boas práticas pedagógicas e artísticas”
- Sensibilizar os serviços prisionais, designadamente: (direcção, corpo de guardas, serviços sociais, professores, etc) para o interesse destes trabalhos dentro do estabelecimento e a sua visibilidade.
- Decorrente daquela visibilidade, sensibilizar também a comunidade civil para a criação de pontes concretas para posterior reintegração.
Portanto é um trabalho feito “dentro”, que se pretende ter repercussões “fora”

Tal como na esmagadora maioria das prisões, a vivência da comunidade reclusa reveste-se de características particulares, algumas da maior sensibilidade e até dramatismo.
São pessoas – homens – que por motivos diverso, com maior incidência para o consumo e tráfico de estupefacientes, desaguaram ali, para cumprir pena. Provenientes de todas as classes sociais, com maior incidência para camadas socialmente mais carenciadas um pouco de todo o país, mas também de diversos países da América do Sul, de África e da Europa do Leste.
Com o fim das penas muitas vezes muito longínquo, e com os laços familiares debilitados ou mesmo cortados, os reclusos perdem a pouca estruturação que possuíam, e entram num processo de degradação pessoal muitas vezes irreversível. Noutros casos, integram-se em grupos, que «dominam» o ambiente prisional. Violência individual ou de grupos, consumo de drogas, inactividade física e intelectual, abandono, doenças, etc, determinam o tempo que passam ali. Detecta-se facilmente que a perda da auto estima é determinante para a regressão e supressão dos frágeis valores que ainda possuíam, e portanto, porta aberta para a degradação total.

Nas prisões em que existem pólos de escolas secundárias, observamos homens que - desde o primeiro ciclo ao ensino superior - se recusam a perder tudo, e ao invés tentam, pelo estudo, reagir à adversidade e até mesmo ao «sistema» prisional. Partindo da realidade e actividade escolar, parece que existe uma solução relativa - sempre relativa - para o problema, que reside num somar de atitudes e esforços que reforcem o empenho dos reclusos/alunos. Acrescentar e elevar a auto estima de cada um. Abrir portas e janelas para o exterior. Para a esperança. Portanto, a auto estima como alavanca. A vontade manifestada por todos para trabalhar. Proporcionar a oportunidade de construir algo que lhes acrescente, valor, confiança e estima e que possam apresentar e partilhar esse trabalho para que se constitua como referência a seguir.

No processo de construção do projecto importa cruzar vários tipos de informação para aclarar as questões mais pertinentes do caminho a percorrer.
O primeiro passo é ouvir os “parceiros”, os alunos/reclusos; professores; serviços de apoio social e psicológico; corpo de guardas e direcção do estabelecimento prisional. Ultrapassadas as sempre pesadas questões burocráticas, é determinante sentir como a ideia do projecto "bate" nos destinatários.
Uma reunião é sempre pouco. Fica mais curiosidade que qualquer outra coisa. Depois a selecção acaba por ser natural e para isso contribui algum avivência ou mesmo experiência por parte de alguns.
Depois e derrubadas algumas barreiras, instala-se o informalismo suficiente e a conversa deambula por áreas, já do interesse pessoal, com alguma incidência na componente artística e cultural. Relataram-se experiências ao nível do teatro, artes plásticas, música e até poesia. A primeira triagem acontece naturalmente. Os vários níveis de auto confiança, auto valorização e auto conceito de cada um começam a observar-se.
Importante a troca de impressões com o corpo docente, onde o interesse é obviamente grande, do que resulta também uma radiografia dos alunos/reclusos, designadamente: os índices de organização mental de cada um: coeficiente cognitivo, responsabilidade, empenho, atitude perante o professor e colegas, ou seja na concretização dos objectivos escolares. Foi uma recolha de informações muito positiva e determinante.
Os responsáveis dos serviços de apoio social e psicológico, forneceram informações sobretudo das ligações e, ou, falta delas com o exterior, mormente a família e amigos, e ainda das fragilidades pessoais, ao nível patológico e de personalidade. -
Nota: Importa aqui recordar dois aspectos que considero da maior importância e que são determinantes para o sucesso do trabalho. Desde logo o cuidado colocado no tipo de linguagem e estilo de comunicação tida com os reclusos/alunos. É fundamental que o nível de quem escuta e quem comunica seja idêntico, mesmo que isso signifique, e significou, cedências diversas, mormente linguísticas significativas. Depois, demonstrar que o produto do trabalho ao ser apresentado para a comunidade civil, portanto no exterior da cadeia, constituir uma grande oportunidade de mostrarem que, apesar da circunstancia de estarem presos, são homens a quem é devida a esperança e oportunidade.
Reclusos/alunos
Estava a chegar a hora dos:
Reclusos/alunos/ACTORES